Categorias
#contos #minicontos Contos e minicontos

Vírus e vermes

Leite borbulhando no fogão. Café pingando na garrafa. O pão do dia anterior no micro-ondas. O resto de margarina na mesa. O cachorro latindo num desespero de fome. Os dois irmãos dormem e a menina chora querendo colo, enquanto o marido questiona onde está seu uniforme e por que não está passado. Álcool em gel na mão de todos, procura as chaves para sair.
As 6h as crianças já estão com a avó que mora ao lado. O coração aflito. No jornal de ontem mais mortes anunciadas. Eram idosos a grande maioria. Não tinha muito o que fazer. O patrão não dispensou e o salário tinha que vir. As escolas e creches se fecharam.

– Deus havia de proteger.
Na rua pouco vazia, aguarda o ônibus chegar. Dentro dele, uns seguram o corrimão com luvas plásticas. Outros seguram terços com as mãos nuas e cochicham alguma oração entre os chacoalhos da condução. No vidro grosso atrás do motorista, o cartaz dizia: “não faça o vírus circular, fique em casa. Vai passar.”                                          E ela tendo que trabalhar.

– Deus havia de proteger.
Ao fundo, ouvia frases soltas de conversas rotas:

“morre todo mundo morre”, “brasileiro não qué trabalhar” “gripezinha, ele bem falou lá” “tão enterrando caixão com pedra pra enganá”

Ainda que ao longe, sentiu medo do desdém alheio. A mãe sempre disse que duvidar do coisa ruim é pedir que ele se mostre. Tirou o tubinho de álcool em gel da bolsa e passou mais um pouco entre os dedos. Que sorte a firma do marido ter doado um pote grande para cada funcionário. Mas descontariam a pandemia no valor do salário.

– Deus havia de proteger.
Água fervendo, ovos poché no prato, café expresso, brioche recém chegado. Cereal, frutas e leite na tigela importada para as crianças. A governanta avisa que a patroa chegaria de viagem. Sorrateiramente, conseguira driblar a quarentena e retornava de Bariloche para o Brasil. O coração aperta. Será que podia? A tensão vai a mil.

– Deus havia de proteger.
Antes do almoço, vê Dona Claudia avançar pela sala, tirando a máscara e as luvas plásticas, pede ao marido silêncio, os vizinhos não podem saber: “Lucrécia, bom dia, prepara um banho pra mim? E tira essa cara de espanto que a pandemia é exagero da mídia, eu estou bem e saudável, fique tranquila.”

Da lavanderia, às escondidas, envia uma mensagem-socorro ao marido: “D. Claudia volto de viaje e será que pudia é? a televisão disse que pode trazer de otro pais e a muié volta assim voando pelo céu?”
Mais um pouco de álcool em gel.
– Deus havia de proteger.
Tarde de afazeres, toques em objetos, Gim para a patroa relaxar.  Terminado o expediente, era hora de voltar.

Na casa da mãe apanha os filhos sonolentos e ao desabafar seus temores, ouve o que também tentava crer: “calma fia, Deus há de proteger”
No fim da semana de trabalho, estranha dor atrás dos olhos começa a aparecer. Respirar fica difícil.
– Deus havia de proteger.

images (4)

Categorias
Contos e minicontos

que lábia tem seus lábios

tumblr_o13ubpz9SA1qiw57uo1_500.jpg         

Cativada por afetos e amando em exageros, certa vez deixei-me apaixonar pelo seu rosto, seu cabelo e suas mãos. Alguns dias ou semanas ao seu lado me fizeram fixar um algo de você dentro de mim. Quando chegaram ao fim, os dias em que estivemos juntos, o tempo arrastou-se devagarinho enquanto eu tentava esquecer sua feição, mas, ainda assim, persistiu na memória a lembrança da sua boca. Sua boca foi a paisagem mais bonita daquelas noites quentes, em que você deixou-se ficar ao meu lado na varanda de casa.

          A luz da noite e da lua quando surgia no céu, iluminava um moço bonito, feito de avelã e de rum. Quase sempre sem querer, ficava a admirar seus lábios, misteriosos. Tinham leve inclinação, que lhe dava o aspecto de um alguém triste. Decaíam do seu rosto lábios carnudos e infelizes. Não me aterei aqui, aos infinitos detalhes. Estes que estão já bastam. Há necessidade apenas de dizer, que foram longos meses cinzentos para apagar sua imagem dos meus dias. Se te visse hoje, de relance, de repente, numa esquina qualquer, é certo que não cairia na sua lábia e nos seus lábios outra vez.  Mas não sei quê e nem como, algo se deflagrou estranhamente numa manhã de quinta-feira.

            Sua boca visitou-me. Veio carregada no rosto de um rapaz das aulas de francês. Nunca havia reparado, mas deixei de atentar ao que ele dizia, quando olhei para ela. Era a sua, era a mesma. Por um momento, as lembranças choveram nos meus pensamentos.
Vê-la por aqui depois de tantos meses, causou sensação estranha, de desejo e de saudade. O tempo continuará a passar, nos distanciando cada vez mais daqueles nossos dias.  Mas eu, que amo tudo para sempre, não esquecerei os momentos, em que esvaziei-me de mim e mergulhei no doce mistério dos seus lábios.  Definitivamente, não esquecerei a feição, a cor e o cheiro, a boca quente de um moço bonito, feito de avelã e de rum.

 

Categorias
Contos e minicontos Sem categoria

Carta de despedida

            Todas as manhãs, acordo tendo que reinventar-me, não sei mais quem sou e não me encaixo no que fui. Você é minha lembrança traumática dos últimos 40 dias e a única pessoa que esteve ao meu lado nos últimos 4 anos. Choro de emoção ao lembrar do que fomos, choro de tristeza por saber que não seremos mais. O medo dessa separação cruel e dolorosa me assombra, a morte interna e/ou externa, sonda meus pensamentos por várias vezes ao dia, o futuro me causa apreensão e previsões de sofrimento. 

              Apesar de tudo sigo em frente, para te ver também seguindo e para um dia conseguir ser feliz por inteiro, refazer-me em um, depois de ter vivido tanto tempo sendo dois. Eu e você. Apesar das mágoas remoídas e decepções vividas, o gosto do nosso beijo, para mim, será sempre o melhor. Não importam os danos que o tempo nos causou, minhas tantas fraquezas e suas repentinas desistências de nós dois, a nossa pele e contato físico sempre serão a lembrança das melhores sensações que tive na vida. Só teus lábios e teu toque me fizeram viajar pelo espaço, mesmo estando dentro de um quartinho, com aquela cama pequena sendo testemunha de nós dois.  Você era só um menino com medo da vida difícil e cheia de sacrifícios que tinha ao meu lado, eu te entendo. Companheiro, amigo, namorado, tudo isso perco hoje, para ganhar a independência emocional que preciso, que precisamos. Por tanto te amar, não posso mais ser sua namorada , não posso viver com você um relacionamento “meia-boca”, fomos intensos demais para isso. 

               Se não podemos ser “cem por cento” juntos, que busquemos nosso “cem por cento” sozinhos. Conformar-se com um final não é nada fácil. Quando existe amor, pior ainda. No entanto, saber que é necessário dar fim a uma história que se prolongou demais, é essencial. Que seus olhos ainda se cruzem com os meus mais algumas vezes, mas que saibam a hora de se esquecerem para sempre. Que seus sorrisos sejam motivo dos meus quando nos vermos, mas que se fechem quando for a hora de parar. Para me despedir, digo que te amo ainda. Quem sabe um dia, daqui cinco ou seis anos, em algum dos carnavais, eu decida esbarrar em você de novo? O mundo é tão pequeno afinal…

Categorias
Contos e minicontos

Outubro

tumblr_mp9gjvsUIQ1r7wlx6o1_500
Ela chegou tarde na cidade, depois de um dia exaustivo de aulas. Um turbilhão de pensamentos sondava a sua noite. Era uma metódica e perfeccionista estudante de psicologia, cheia de rotina, morais e bons costumes. Entrou na sua casa, sentou, olhou no espelho e lembrou de como não podia mais pensar naquele cara (já estava pensando).     Há algumas semanas que saía com outra pessoa, mais parecida com ela e por isso não podia ter uma recaída depois de tanto tempo, queria se enganar com o novo amor. Colocou em embate a razão e a emoção, queria dar vitória aos seus pensamentos racionais de que deveria insistir na nova relação, mas, ela sentiu na alma uma fisgada de paixão.   Lembrou-se  de como a vida é curta para ficar agonizando um sentimento que insiste em viver e florescer dentro do peito. 
Colocou um vestido simples, um tênis no pé, e saiu na madrugada até a casa dele.
Eram dez meses sem vê-lo, mas apenas alguns dias sem pensar, eram dez meses sem falar com ele, mas menos de cinco minutos sem desejar seu beijo.
Fez-se a maluquice, deixou o juízo em casa e tratou de levar na bolsa só o que era essencial: o coração, a saudade e a vontade.
Em frente à casa, desligou o carro e percebeu que estava nervosa, não tinha forças para descer e se revelar. Será que ele se assustaria? Ignoraria? Não atenderia? Era loucura! Ele não ia entender nada.
Com todos impedimentos mentais que ela criava, ainda assim, arriscou. 
Perde-se o medo de viver quando se encontra uma paixão que tira os pés do chão.
Saiu do carro e tocou a campainha. Ainda estava insegura.
Eis que surgiu à porta, o alvo de toda loucura. O silêncio pairou alguns minutos naquela madrugada de verão quente. Perplexa e quase arrependida, viu a resposta que procurava. 
Por tanto tempo não se viram e não se tocaram, no entanto, se sentiam e se queriam de longe. Foi automático, telepático. Estavam conectados por uma rede sem fio. Dez meses de frieza e distância se desfizeram em um olhar. Se entendiam mentalmente melhor do qualquer outro casal, se sabiam.

Ele sorriu, abriu o portão e disse…vem! 

 

Categorias
Contos e minicontos

vontades

tumblr_ljeot6Oxqq1qgae67o1_500

         Eu sou um monte de desejos esquecidos, de vontades adormecidas, de paixões mal resolvidas. Vez ou outra elas voltam a sondar meus pensamentos e aí, lá vou eu sentir saudade…Uma ânsia de voltar no tempo, fazer tudo diferente, mudar as coisas, perpetuar e consertar momentos. Depois, sinto vontade de fazer tudo igual mesmo, repetir as situações, e ainda assim, com os mesmos erros, continuar a ter lembranças e sentir vontade de viver de novo. 
Há erros que são nostálgicos e felizes. Há erros que são acertos.